Podemos afirmar que existem três
diferentes formas de representar a relação ensino/aprendizagem escolar ou mais
especificamente, a sala de aula.
Falaremos, inicialmente, de modelos pedagógicos e, na falta de terminologia mais atualizada, ou adequada,
falaremos em pedagogia diretiva, pedagogia não-diretiva e, talvez criando um
novo termo, pedagogia relacional. Mostraremos como tais modelos são, por sua
vez, sustentados, cada um deles, por determinada epistemologia. Epistemologia que se mostrou refratária a
toda exuberante crítica da sociologia da educação que se desenvolveu no país,
do final dos anos 70 até agora.
a)Pedagogia diretiva e seu pressuposto epistemológico
Pensemos no primeiro modelo. Para
configurá-lo é só entrar numa sala de aula: é pouco provável que a gente se
engane. O que encontramos aí? Um
professor que observa seus alunos entrarem na sala, aguardando que se sentem,
que fiquem quietos e silenciosos. As
carteiras estão devidamente enfileiradas e suficientemente afastadas uma da
outra para evitar que os alunos troquem conversas. Se o silêncio e a quietude
não se fizerem logo, o professor gritará para um aluno, xingará outra aluna até
que a palavra seja monopólio seu. Quando isto acontecer, ele começará a dar a
aula.
Como é esta aula? O professor fala e o aluno escuta. O professor dita e o aluno copia. O professor decide o que fazer e o aluno
executa. O professor ensina e o aluno
aprende. Se alguém observasse uma sala
de aula na década de 60 ou de 50, ou, quem sabe, de dois séculos atrás, diria,
provavelmente, a mesma coisa: falaria
como Paulo Freire, no Pedagogia do Oprimido. Por que o professor age
assim? Muitos dirão, porque ele aprendeu
que é assim que se ensina. Para mim, esta resposta é correta, mas não é
suficiente. Então, por que mais? Penso que o professor age assim porque ele
acredita que o conhecimento pode ser
transmitido para o aluno. Ele acredita
no mito da transmissão do conhecimento -
do conhecimento enquanto forma ou estrutura; não só enquanto conteúdo. O professor
acredita, portanto, numa determinada
epistemologia, isto é, numa “explicação”, ou, melhor, crença da gênese e
do desenvolvimento do conhecimento, “explicação” da qual ele não tomou
consciência e que, nem por isso, é menos eficaz. Diz um professor (Becker, 1992): O
conhecimento “se dá à medida que as
coisas vão aparecendo e sendo introduzidas por nós nas crianças...”. Outro professor diz: O conhecimento “é transmitidos, sim; através do meio-ambiente, família, percepções,
tudo”. Outro, ainda: o conhecimento se
dá “na medida em que a pessoa é estimulada, ela é perguntada, ela é incitada,
ela é questionada , ela é, até, obrigada a dar uma resposta...”.
Como se configura esta epistemologia?
Falemos, como na linguagem epistemológica,
em sujeito e objeto. O sujeito é o
elemento conhecedor, o centro do conhecimento.
O objeto é tudo o que o sujeito não é. O que é o não-sujeito? – o mundo
onde ele está mergulhado; isto é, o meio físico e/ou social. Segundo a epistemologia que subjaz à prática
desse professor, o indivíduo, ao nascer, nada tem em termos de conhecimentos: é
uma folha de papel em branco; uma tábula rasa. É assim o sujeito na visão
epistemológica desse professor: uma folha em branco. Então, de onde vem o seu conhecimento
(conteúdo) e a sua capacidade de conhecer (estrutura)? Vem do meio físico e/ou
social. Empirismo é o nome desta explicação da gênese do desenvolvimento do
conhecimento. Sobre tábula rasa,
segundo a qual “não há nada no nosso intelecto que não tenha entrado lá através
dos nossos sentidos”, diz Papper (1991): “Essa idéia não é simplesmente errada,
mas grosseiramente errada...” (p.160). Voltemos
ao professor na sala de aula.
O
professor considera que seu aluno é tábula rasa somente quando ele nasceu como
ser humano, mas frente a um novo conteúdo estocado na sua grade curricular, ou
nas gavetas de sua disciplina. A
atitude, nós a conhecemos. O alfabetizador considera que seu aluno nada sabe em
termos de leitura e escrita e que ele tem que ensinar tudo. Mais adiante, frente à aritmética, o
professor, novamente, vê seu aluno como alguém que nada sabe sobre somas e
subtrações. No segundo grau, numa aula de física, o professor vai tratar seu
aluno como alguém sem nenhum saber sobre espaço, tempo, relação causal. Já na universidade, o professor e matemática
olha para seus alunos, no primeiro dia de aula, e “pensa”: “60% já está reprovado!” Isto porque ele os
concebe, não apenas como folha em branco na matemática que ele vai ensinar,
mas, por causa da sua concepção epistemológica, como estruturalmente incapazes
de assimilar esse saber.
Como se vê, a ação desse professor não é
gratuita. Ela é legitimada, ou fundada
teoricamente, por uma epistemologia.
Segundo esta, o sujeito é totalmente determinado pelo mundo do objeto ou
meio físico e social. Quem representa
este mundo, na sala de aula, é, por excelência, o professor. No seu imaginário, ele, e somente ele, pode
produzir algum novo conhecimento no aluno.
O aluno aprende se, e somente se, o professor ensina. O professor acredita no mito da transferência
do conhecimento: o que ele sabe, não importa o nível de abstração ou de
formalização, pode ser transferido ou transmitido para o aluno. Tudo o que o aluno tem a fazer é submeter-se
à fala do professor: ficar em silêncio, prestar atenção, ficar quieto e
repetir tantas vezes quantas forem
necessárias, escrevendo, lendo, etc... até aderir em sua mente, o que o
professor deu.
Como se vê, esta pedagogia, legitimada
pela epistemologia empirista, configura o próprio quadro da reprodução do
autoritarismo, da coação, da heteronomia, da subserviência, do silêncio, da
morte da crítica, da criatividade, da curiosidade. Nessa sala de aula, nada de novo acontece;
velhas perguntas são respondidas com velhas respostas. A certeza do futuro está na reprodução pura e
simples do passado. A disciplina escolar que tantas vítimas já produziu é exercida
com todo rigor, sem nenhum sentimento de culpa, pois há uma epistemologia, uma
psicologia (da qual não falamos aqui) e uma pedagogia que a legitimam. O aluno, egresso dessa escola, será bem
recebido no mercado de trabalho, pois aprendeu a silenciar, mesmo discordando,
perante a autoridade do professor, a não reivindicar coisa alguma, a
submeter-se e a fazer um mundo de coisas sem sentido, sem reclamar. O produto pedagógico acabado dessa escola é
alguém que renunciou ao direito de pensar e que, portanto, desistiu de sua
cidadania e do direito ao exercício da política no seu mais pleno significado:
qualquer projeto que vise a alguma
transformação social escapa a seu horizonte, pois ele deixou de acreditar que
sua ação seja capaz de qualquer mudança.
O cinismo é seu jargão.
b) Pedagogia não-diretiva e seu pressuposto epistemológico
Pensemos no segundo modelo. Não é fácil detectar sua presença. Ela está mais nas concepções pedagógicas e
epistemológicas do que na prática porque esta é difícil de viabilizar. Pensemos, então, como seria a sala de aula de
acordo com esse modelo. O professor é um
auxiliar do aluno, um facilitador (Carl Rogers). O aluno já traz um saber que ele precisa,
apenas, trazer à consciência, organizar, ou, ainda, rechear de conteúdo. O professor deve interferir o mínimo
possível. Qualquer ação que o aluno
decida fazer é, a priori, boa, instrutiva.
É o regime do laissez-faire: “deixa fazer” que ele encontrará o seu
caminho. O professor deve
policiar-se para interferir o mínimo
possível. Qualquer semelhança com a
“liberdade de mercado” do neo-liberalismo é mais do que coincidência.
O professor não-diretivo acredita que o
aluno aprende por si mesmo. Ele pode, no
máximo auxiliar a aprendizagem do aluno, despertando o conhecimento que já
existe no aluno. Ensinar? Nem pensar! Ensinar prejudica o aluno. Como diz um professor (Becker, 1992):
“Ninguém pode transmitir. É o aluno que
aprende”. Outro professor afirma: “Tu não transmite o conhecimento. Tu oportuniza, propicia, leva a pessoa a
conhecer”. Outro, ainda: “...acho que
ninguém pode ensinar ninguém: pode tentar transmitir, pode tentar mostrar...
acho que a pessoa aprende praticamente por si...”. Que epistemologia sustenta
esta modelo pedagógico?
A epistemologia que fundamenta essa
postura pedagógica é a apriorista. “Apriorismo” vem de a priori, isto é, aquilo
que é posto antes como condição do que vem depois. O que é posto antes? A bagagem hereditária. Esta epistemologia acredita que o ser humano
nasce com o conhecimento já programado na sua herança genética. Basta um mínimo de exercício para que se
desenvolvam ossos, músculos e nervos e assim a criança passe a postar-se ereta,
engatinhar, caminhar, correr, andar de bicicleta... assim também com o
conhecimento. Está tudo previsto. É suficiente proceder a ações para que tudo
aconteça em termos de conhecimento. A
interferência do meio físico ou social – deve ser reduzida ao mínimo. É só pensar no Emílio de Rousseau ou nas
crianças de Summerhill (Snyders, 1974).
As ações espontâneas farão a criança transitar por fases de
desenvolvimento , cronologicamente fixas, que são chamadas de “estágios” e que
são, freqüentemente, confundidos com os estágios da Epistemologia Genética
piagetiana: nesta, os estágios são, ao contrário, cronologicamente, variáveis. Voltemos ao papel do professor.
O professor, imbuído de uma epistemologia
apriorista – inconsciente, na maioria das vezes – renuncia àquilo que seria a
característica fundamental da ação docente: a intervenção no processo de
aprendizagem do aluno. Ora, o poder que
é exercido sem reservas, com
legitimidade epistemológica no modelo anterior , é aqui escamoteado. Ora, a trama de poder, em qualquer ambiente humano, pode ser disfarçada, mas não
eliminada. Acontece que, na escola, há
limites disciplinares intransponíveis. O
que acontece, então, com o pedagogo não diretivo? Ou ele arranja uma forma mais “subliminar” de
exercer o poder ou ele sucumbe.
Freqüentemente, o poder exercido deste modo assume formas mais perversas
que na forma explícita do modelo anterior.
Assim como no regime da “livre iniciativa”
ou de “liberdade de mercado” o estado aumenta
seu poder para garantir a continuidade e, até, o aumento dos privilégios
da minoria rica utilizando, não a perseguição política, mas a expropriação dos
salários e a desmoralização das instituições representativas dos trabalhadores,
assim também, por mecanismos indiretos exerce-se, por vezes, numa sala de aula
não-diretiva, um poder tão predatório como o da sala de aula diretiva. Por isso, Celma (1979) afirma que os alunos
tinham pavor de sua professora não-diretiva.
Como vimos, uma pedagogia desse tipo não é
gratuita. Ela tem legitimidade teórica:
extrai sua fundamentação da epistemologia apriorista. O professor parece, no entanto, não tomar consciência
disso. Esta mesma epistemologia, que
concebe o ser humano como dotado de um saber “de nascença”, conceberá, também,
dependendo das conveniências, um ser humano desprovido da mesma capacidade, “deficitário”. Este “déficit”, porém, não tem causa externa: sua
origem é hereditária. Onde se detecta
maior incidência de dificuldades ou retardos de aprendizagem? Entre os
miseráveis, o mal-nutridos, os pobres, os marginalizados... Está, aí, a teoria da carência cultural para
garantir a interpretação de que marginalização econômico-social e “déficit”
cognitivo são sinônimos. A criança marginalizada, entregue a si mesma, numa
sala de aula não-diretiva, produzirá, com alta probabilidade, menos, em termos
de conhecimento, que uma criança de classe média ou alta. Trata-se, aqui, de acordo com o apriorismo,
de “deficit” herdado: epistemologicamente legitimado, portanto.
c) Pedagogia relacional e seu pressuposto epistemológico
O professor e os alunos entram na sala de
aula. O professor traz algum material –
algo que, presume, tem significado para os alunos. Propõe que eles explorem este material cuja natureza depende do destinatário:
crianças de pré-escola, de primeiro grau, de segundo grau, universitário, etc.
Esgotada a exploração do material, o professor dirige um determinado número de
perguntas, explorando, sistematicamente, diferentes aspectos problemáticos a
que o material dá lugar. Pode solicitar,
em seguida, que os alunos representem desenhando, pintando, escrevendo, fazendo
cartunismo, teatralizando, etc... o que elaboram. A partir daí, discute-se a direção, a
problemática, o material da(s) próxima(s) aula(s).
Por que o professor age assim? Porque ele
acredita que o aluno só aprenderá alguma coisa, isto é, construirá algum
conhecimento novo, se ele agir e problematizar a sua ação. Em outras palavras,
ele acredita que há duas condições necessárias para que algum conhecimento novo
seja construído: a) que o aluno aja (assimilação) sobre o material que o
professor presume que tenha algo de cognitivamente interessante, ou melhor,
significativo para o aluno; b) que o aluno responda para si mesmo às
perturbações (acomodação) provocadas pela assimilação desse material, ou, que o
aluno se aproprie, neste segundo momento, não mais do material, mas dos
mecanismos íntimos de suas ações sobre este material; este processo far-se-á
por reflexionamento e reflexão (Piaget, 1977), a partir das questões levantadas
pelos próprios alunos e das perguntas levantadas pelo professor, e de todos os
desdobramentos que daí ocorrerem. O
professor não acredita no ensino em seu sentido convencional ou tradicional,
pois não acredita que um conhecimento (conteúdo) e uma condição prévia de
conhecimento (estrutura) possa passar, por força do ensino, da cabeça do
professor para a cabeça do aluno. Não
acredita na tese de que a mente do aluno é tábula rasa, isto é, que o aluno,
frente a um conhecimento novo, seja totalmente ignorante e tenha que aprender
tudo da estaca zero, não importa o estágio do desenvolvimento em que se
encontre. Ele acredita que tudo o que o
aluno construiu até hoje em sua vida serve de patamar para continuar a
construir e que alguma porta abrir-se-á
para o novo conhecimento é só questão de descobri-la; ela a descobre por
construção. “Aprender é proceder a uma síntese indefinidamente renovada entre a
continuidade e a novidade” (Inhelder et al... 1977 p.263): aprendizagem é, por
excelência, construção: ação e tomada de consciência da coordenação das ações,
portanto. Professor e aluno determinam-se mutuamente. Como vemos, a epistemologia deste professor
mostra diferenças fundamentais com relação às anteriores. Como se configura ela?
O professor tem todo um saber construído,
sobretudo numa determinada direção do saber formalizado. Este professor, que
age segundo o modelo pedagógico relacional, professa uma epistemologia também
relacional. Ele concebe a criança (o
adolescente, o adulto) seu aluno, como tendo uma história de conhecimento já
percorrida: a aprendizagem da língua materna é um fenômeno que absolutamente
não pode ser subestimado; eu ousaria dizer que a criança que fala uma língua
tem condições, respeitado o nível de formalização, de aprender qualquer
coisa. Aliás, o ser humano, ao nascer,
não é uma tábula rasa. Antes, ao
contrário, ele traz uma herança biológica que é o oposto da “folha de papel em
branco”. Diz Papper, lembrando que a
afirmação de que “nada há no intelecto que não tenha passado primeiramente
pelos sentidos é grosseiramente errada:” “Basta que nos lembremos dos dez
milhões de neurônios do nosso córtex cerebral, alguns deles (as células
piramidais do córtex) cada um com um total estimado em dez mil sinapses”
(p.160). Para Piaget, mentor por excelência de uma epistemologia relacional,
não se pode exagerar a importância do meio social.
O que ele
rejeita, no entanto, é a crença de que a bagagem hereditária já traz, em si,
programados os instrumentos (estruturas) do conhecimento e segundo a qual
bastaria o processo de maturação para estes instrumentos manifestarem-se em idades
previsíveis, segundo estágios cronologicamente fixos (apriorismo). Rejeita, de outro lado, que a simples pressão do meio social sobre o sujeito
determinaria nele, mecanimente, as estruturas do conhecer (empirismo). Para
Piaget, o conhecimento tem início quando o recém-nascido age assimilando alguma
coisa do meio físico ou social. Este
conteúdo assimilado, ao entrar no mundo do sujeito, provoca, aí, perturbações,
pois traz consigo algo novo para o qual a estrutura assimiladora não tem
instrumento. Urge, então, que o sujeito
refaça seus instrumentos de assimilação em função da novidade. Este refazer do sujeito sobre si mesmo é a
acomodação. É este movimento, esta ação
que refaz o equilibrio perdido: porém, o refaz em outro nível, criando algo
novo no sujeito. Este algo novo fará com
que as próximas assimilações sejam diferentes das anteriores, sejam melhores:
equilibração majorante, isto é, o novo equilíbrio é mais consistente que o
anterior. O sujeito constrói, daí,
construtivismo seu conhecimento em duas dimensões complementares, como conteúdo
e como forma e estrutura: como conteúdo ou como condição prévia de assimilação
de qualquer conteúdo.
No mundo interno (endógeno) do sujeito,
algo novo foi criado. Algo que é síntese
do que existia, antes, como sujeito originariamente, da bagagem hereditária e
do conteúdo que é assimilado do meio social.
O sujeito cria um outro, dentro dele mesmo, que não existia
originariamente. E cria-o por força de
sua ação (assimiladora e acomodadora). A
ação do sujeito, portanto, constitui, correlativamente, o objeto e o próprio
sujeito. Sujeito e objeto não existem
antes da ação do sujeito. A consciência
não existe antes da ação do sujeito.
Porque a consciência é, segundo Piaget, construída pelo próprio sujeito
na medida em que ele se apropria dos mecanismos íntimos de suas ações, ou
melhor dito, da coordenação de suas ações.
Este processo construtivo não tem fim e nem começo absoluto. Ele pode ser aplicado por outro prisma
teórico, também de Piaget. A teoria da
abstração reflexionante, uma teoria explicativa que é mais competente que a
teoria da equilibração para explicar o que acontece ao nível das trocas
simbólicas, ao nível da “manipulação” dos símbolos, das relações sociais e não só ao nível da
manipulação dos objetos do mundo físico com sua gama interminável de aspectos
exploráveis. Deixemos, no entanto, a
teoria da abstração já referida acima para outra ocasião (cf. Becker, 1993).
O professor acredita que seu aluno é capaz
de aprender sempre. Esta capacidade
precisa, no entanto, ser vista sob duas dimensões, entre si
complementares. A estrutura, ou condição
prévia de todo o aprender, que indica a capacidade lógica do aluno e o
conteúdo. Lembremos que para Piaget
(1967) a estrutura é orgânica antes de ser formal. A dinamização ou
dialetização do processo de aprendizagem exige, portanto, dupla atenção do
professor. O professor, além de ensinar, precisa aprender o que seu aluno já
construiu até o momento, condição prévia das aprendizagens futuras. O aluno
precisa aprender o que o professor tem a ensinar (conteúdos da cultura
formalizada, por exemplo); isto desafiará a
intencionalidade de sua consciência (Freire, 1979) ou provocará um
desiquilíbrio (Piaget, 1936:1967) que exigirá do aluno respostas em duas
dimensões complementares: em conteúdo e em estrutura. Para Freire, o professor, além de ensinar,
passa a aprender; e o aluno, além de aprender, passa a ensinar. Nesta relação o professor e alunos avançam no
tempo. As relações de sala de aula, de cristalizadas
com toda a dose de monotonia que as caracteriza – passam a ser fluídas. O professor construirá, a cada dia, a sua
docência, dinamizando seu processo de aprender.
Os alunos construirão, a cada dia, a sua discência, ensinando aos
colegas e ao professor novas coisas. Mas
o que avança mesmo neste processo é a
condição prévia de todo aprender ou de todo o conhecimento, isto é, a
capacidade construída de construir sempre mais e novos conhecimentos.
A tendência, nessa sala de aula, é a de superar,
por um lado, a disciplina policialesca e a figura autoritária do professor que
a representa, e, por outro, a de ultrapassar o dogmatismo do conteúdo. Não se trata de instalar um regímen de anomia
(ausência de regras ou leis de convivência) ou do laissez-faire, nem de
esvaziar o conteúdo curricular: estas coisas são características do segundo
modelo pedagógico com o qual confunde-se, freqüentemente, uma proposta
construtivista. Trata-se, antes, de
criticar radicalmente, a disciplina policialesca e construir uma disciplina
intelectual ou regras de convivência, o que permite criar um ambiente fecundo
de aprendizagem. Trata-se, também, de
recriar cada conhecimento que a humanidade já criou (pois não há outra forma de
entender-se a aprendizagem segundo a psicologia genética piagetiana, só se
aprende o que é (re)criado para si e, sobretudo, de criar conhecimentos novos:
novas respostas para antigas perguntas e novas perguntas refazendo antigas
respostas e, não em última análise, respostas novas para perguntas novas. Trata-se, numa palavra, de construir o mundo
que se quer e não de reproduzir/repetir
o mundo que os antepassados construíram para eles ou herdaram de seus antepassados.
O resultado desta sala de aula é a
construção e a descoberta do novo é a criação de uma atitude de busca e de coragem que esta busca exige.
Esta sala de aula não reproduz o passado pelo passado, mas debruça-se sobre o
passado porque aí se encontra o embrião do futuro. Vive-se intensamente o
presente na medida em que se constrói o futuro buscando no passado sua
fecundação. Dos escombros do passado
delineia-se o horizonte do futuro: origina-se, daí, o significado que dá
plenitude ao presente. Para quem pensa que estou desenhando um mar de rosas,
alerto que para grande número de indivíduos configura-se como extremamente
penoso mexer no passado. Como diz a mãe
de um menino de rua: para que vou lembrar o passado se ele não tem nada de bom?
Aqui, os conceitos, muito próximos entre si, de tomada de consciência de Piaget
e de conscientização de Freire são excepcionalmente fecundos para dialetizar o
processo passado-presente-futuro. A
convicção que a epistemologia genética nos traz é a de que este é o caminho
para jogar-se para o futuro, para adiantar-se aos acontecimentos. Para não andar a reboque da história, mas
para fazer história, para ser sujeito, portanto.
Considerações finais
Em nossas pesquisas, ou em
observações informais, detectamos o seguinte comportamento: professores que
participavam de greve do magistério público estadual ou federal, como
“militantes progressistas”, mostrando compreensão, a nível macro, do que
acontecia na economia e na política, ao retornar à sala de aula (nível micro),
após o término da greve, voltavam a ser
professores plenamente sintonizados com o modelo A. Sua crítica
sociológica, freqüentemente lúcida, exercida, via de regra, segundo parâmetros
marxistas, mostrava-se incapaz de atingir sua ação docente (prática), nem
atingia seu modelo pedagógico (teoria). Por quê?
Não se desmonta um modelo pedagógico
arcaico somente pela crítica sociológica, por mais importante que seja
esta. Segundo nossa hipótese, a
desmontagem de um modelo pedagógico só pode ser realizada completamente pela
crítica epistemológica. Em outras
palavras, a crítica epistemológica é insubstituível para a superação de
práticas pedagógicas fixistas, reprodutivistas, conservadoras, sustentadas
pelas epistemologias empirista ou apriorista.
Note-se que estas epistemologias fundam, por um lado, o positivismo e,
de forma menos fácil, de mostrar o neo-positivismo, e, por outro, o idealismo
ou o racionalismo.
Pensamos, também, que a formação docente
precisa incluir, cada vez mais, a crítica epistemológica. Nossa pesquisa sobre a epistemologia do
professor (Becker, 1992) mostrou o quanto esta crítica está ausente e quanto o
seu primitivismo conserva o professor prisioneiro de epistemologias do senso
comum, tornando-os incapazes de tomar consciência das amarras que aprisionam
seu fazer e seu pensar.
Pudemos experienciar o quanto de
fecundidade teórico-crítica, aliás inesgotável, a epistemologia genética
piagetiana possibilita. O pensamento de
Paulo Freire tem mostrado, em alguns momentos, uma fecundidade similar, em
termos pedagógicos; mas também em termos epistemológicos (cf. Andreola, 1993).
Uma proposta pedagógica, dimensionada,
pelo futuro que vislumbramos, deve ser construída pelo poder constitutivo e
criador da ação humana “é a ação que dá significado as coisas!” Mas não a ação
aprisionada: aprisionada pelo
treinamento, pela monotonia mortífera da repetição, pela predatória imposição
autoritária. Mas, sim a ação que, num primeiro momento realiza os desejos
humanos, suas necessidades e, num segundo momento, apreende simbolicamente o que aprendeu no primeiro
momento: não só assimilação, mas assimilação e acomodação; não só
reflexionamento, mas reflexionamento e reflexão; não só ação de primeiro grau ,
mas ação de primeiro e de segundo graus e de enésimo grau; numa palavra, não só
prática , mas prática e teoria. A
acomodação, a reflexão, as ações de segundo grau e a teoria retroagem sobre a
assimilação, o reflexionamento, as ações de primeiro grau e a prática,
transformando-os. Poder-se-á, assim,
enfrentar o desafio de partir da experiência do educando, recuperando o sentido
do processo pedagógico, isto é, recuperando e (re)constituindo o próprio
sentido do mundo do educando... e do educador.
Uma proposta pedagógica relacional visa a
sugar o mundo do educando para dentro do mundo conceitual do educador. Este mundo conceitual do educador sobre
perturbações, mais ou menos profundas, com a assimilação deste conteúdo
novo. A alternativa é: responder ou
sucumbir. A resposta abre um mundo novo
de criações. A não resposta condena o
professor às velhas fórmulas que descrevemos acima. A condição para que o professor responda,
está, como vimos, numa crítica radical não só de seu modelo pedagógico, mas de
sua concepção epistemológica.
Para enfrentar este desafio, o professor
deveria responder, antes, a seguinte questão: que cidadão ele quer que seu
aluno seja? Um indivíduo subserviente, dócil, cumpridor de ordens sem perguntar
pelo significado das mesmas, ou um indivíduo pensante, crítico, que, perante
cada nova encruzilhada prática ou teórica, pára e reflete, perguntando-se pelo
significado de suas ações futuras e, progressivamente, das ações do coletivo
onde se insere? Esta parece-me, é a pergunta fundamental que permite iniciar o
processo de restauração do significado e da construção de um mundo de significações
futuras.
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