sábado, 12 de maio de 2012

Conhecimento didático: a base da sala de aula

http://revistaescola.abril.com.br/planejamento-e-avaliacao/planejamento/base-sala-aula-428564.shtml

Saiba como as ciências que estudam as relações entre o objeto de estudo, o aluno e o professor ajudam a ensinar melhor cada um dos conteúdos escolares

Paola Gentile (pagentile@abril.com.br)
Como ensinar os alunos a resolver problemas de adição e subtração? O que fazer para que as crianças leiam cada vez melhor por si mesmas? O que propor quando os estudantes têm dificuldade de entender um texto sobre Ciências? Perguntas como essas são feitas diariamente por professores nas salas de aula do mundo afora. Todas elas são relacionadas às didáticas específicas, conhecimento que, infelizmente, não faz parte da maioria dos currículos de formação docente (não confundir com a disciplina conhecida como Didática Geral, que aparece em mais de 80% das faculdades de Pedagogia e na qual são vistas as teorias gerais da Educação e a história dos fundamentos pedagógicos - e um pouco sobre planejamento e avaliação).

O conhecimento sobre as didáticas específicas, que deveria ser a verdadeira matéria-prima do trabalho do professor (a única forma de garantir o aprendizado), existe e, muito lentamente, começa a ser incorporado às escolas. Hoje, sabe-se que os alunos sempre têm alguma, ou muita, informação sobre o objeto de ensino que será trabalhado em classe. Portanto, é preciso levar isso em conta na hora de planejar e propor atividades - em vez de ficar simplesmente reproduzindo um mesmo método como se a turma fosse 100% homogênea, tanto em termos de conhecimentos prévios como na capacidade de avançar. "É por isso que as metodologias vigentes têm sido tão criticadas e a existência de uma didática única está colocada em xeque", diz Lino de Macedo, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Ou seja, há didáticas específicas (no plural) porque não apenas o jeito de ensinar Geografia é diferente do de ensinar História, mas porque dentro da própria disciplina há formas mais eficientes de trabalhar cada conteúdo. Quer um exemplo simples? Que tal, nas aulas de Educação Física, jogar futebol do mesmo jeito que basquete? Se isso não funciona, por que, então, se usam estratégias semelhantes para fazer a turma aprender frações e geometria, quando se sabe que os alunos constroem cada um desses conceitos de uma maneira? Infelizmente, em Educação, o conhecimento didático ainda não é visto como ciência (fruto de pesquisas sérias): "A idéia de compartilhar as novas teorias e práticas não é tão difundida quanto nas outras áreas do conhecimento", afirma o francês Gérard Vergnaud, um dos maiores especialistas em didática. "Muitos ainda resistem às descobertas por acreditar que basta repetir o que é feito há séculos."

Da análise à prática

Na América do Sul, o país mais avançado em termos de pesquisa didática é a Argentina. NOVA ESCOLA esteve em Buenos Aires para acompanhar os trabalhos desenvolvidos nas áreas de Língua, Matemática e Ciências. E descobriu que é justamente a rapidez com que os resultados dos estudos chegam às salas de aula o diferencial dos nossos vizinhos. "Falta aumentar a abrangência dessa divulgação", diz Patricia Sadovsky, doutora em didática da Matemática pela Universidade de Buenos Aires e uma das orientadoras mais ativas de projetos nessa área.

Segundo Delia Lerner, investigadora do Instituto de Ciências da Educação da Universidade de Buenos Aires, os conhecimentos didáticos não derivam diretamente das ciências de referência, ainda que se apóiem nos saberes produzidos, por exemplo, nas áreas de Psicologia e Lingüística, para elaborar hipóteses didáticas: "As didáticas específicas se ocupam do estudo rigoroso de projetos de ensino realizados em sala de aula e estão centrados na análise das interações que se produzem entre o professor, o aluno e o conteúdo em questão". O objetivo é, então, compreender as relações entre o ensino e a aprendizagem de certos conteúdos específicos, estudá-las e produzir conhecimento teórico (leia no quadro acima como é feita uma pesquisa didática intervencionista).

O produto desses estudos serve para variados fins: é subsídio para novas pesquisas - já que a conclusão de uma delas levanta diversas outras dúvidas; orienta equipes que elaboram diretrizes curriculares; dá fundamentos para cursos de formação de professores; e é referência para que os docentes planejem projetos e seqüências didáticas que serão usadas posteriormente em sala de aula.

"Nossos estudos dão certo porque todos os pesquisadores têm contato direto com a escola, seja na elaboração do currículo dos cursos de formação continuada, seja como capacitadores da rede pública, seja como professores da Educação Básica", resume Patricia (ela, por exemplo, dirige grupos de investigação no Sindicato Único dos Trabalhadores de Educação da Província de Buenos Aires e no Centro de Pedagogia de Antecipação, que se dedica à capacitação em serviço dos educadores). Além disso, a prefeitura de Buenos Aires costuma disponibilizar na internet os currículos de todas as séries, divididos por disciplina e com as seqüências didáticas, muitas delas elaboradas com base nos resultados das pesquisas.

Outras formas de divulgar o conhecimento didático são a troca de informações entre professores e a publicação de livros. No primeiro caso, o trabalho de Claudia Molinari é exemplar. Ela leciona Didática de Leitura e Escrita na Universidade Nacional de La Plata e dirige um grupo de coordenadoras pedagógicas e professoras que fazem as pesquisas nas escolas em que trabalham. Assim, são produzidos conhecimentos didáticos durante as atividades de formação continuada. "Nossas conclusões são discutidas no horário de trabalho coletivo." (Leia mais no quadro da página ao lado.) Já o grupo de Ana Maria Espinoza, do departamento de Ciências da Educação da Universidade de Buenos Aires, está concluindo a edição do material com as conclusões sobre como os alunos compreendem os textos didáticos nas aulas de Ciências Naturais.

Graças a essa contínua produção de conhecimento, os principais pesquisadores argentinos têm sido constantemente convidados a vir ao Brasil para dar palestras e realizar jornadas de trabalho com coordenadores pedagógicos e professores tanto de redes públicas como de instituições privadas. Por aqui, infelizmente, ainda não há projetos sistemáticos nessa área, apenas algumas iniciativas pontuais (saiba mais no quadro acima).

Nasce uma pesquisa
Os primeiros a realizar pesquisas didáticas foram os franceses, que buscavam uma forma mais adequada de ensinar Matemática. O grupo liderado por Guy Brousseau fez as primeiras explorações nos anos 1970. Atualmente, os principais centros de produção de conhecimento didático estão na França, na Suíça e no Canadá, além da Argentina.

Existem dois tipos de pesquisa didática: a naturalista, que analisa uma prática já utilizada em sala de aula, e a intervencionista, que estuda a interação entre professor, aluno e conteúdo por meio de projetos de ensino, seqüências didáticas e atividades elaboradas com essa finalidade. Em ambos os casos, o objeto de investigação é escolhido com base em problemas de ensino e aprendizagem.

Adriana Casamajor, Egle Pitton e Silvina Muzzanti, investigadoras do grupo de Ana Espinoza, contam que o tema de estudo nasceu de uma inquietação dos professores: a idéia, amplamente difundida nas escolas argentinas, de que os estudantes não entendem os textos didáticos de Ciências por ter dificuldades em Língua (o trabalho, aliás, concluiu que os livros didáticos usam termos que muitas vezes não são compreendidos pelas crianças e as analogias usadas pelos autores não ajudam a esclarecer os conceitos. Portanto, o professor deve fazer intervenções para facilitar a compreensão).

As pesquisas nas áreas de Alfabetização inicial, Leitura e Escrita, Matemática e Ciências são as mais avançadas atualmente. Mesmo assim, ainda existem muitos conteúdos inexplorados. Sem falar nas outras disciplinas... "Até porque cada investigação gera novas dúvidas e levanta diversos outros problemas de aprendizagem. Nos nossos relatos finais, fazemos questão de deixar explícito que as conclusões estão em aberto e sujeitas a novas análises", destaca Mirta Castedo, da Universidade de La Plata. Quem se habilita?
As etapas de uma boa pesquisa 
A pesquisa intervencionista, também conhecida como engenharia didática, geralmente é feita por alunos de pós-graduação e coordenada por seus orientadores. Especialistas nos conteúdos estudados podem ser convidados a participar do grupo, que passa pelas seguintes fases:

Escolha do tema Os resultados de pesquisas nas ciências de referência, de avaliações e a observação de dificuldades de ensino e aprendizagem são as principais fontes dos pesquisadores.

Análise preliminar É fundamental conhecer bem o conteúdo, buscando bibliografia sobre ele, fazer o mapeamento de como ele é usualmente ensinado e saber se há pesquisas psicogenéticas sobre as concepções dos alunos em relação ao objeto do conhecimento.

Envolvimento da escola 
A pesquisa deve ser feita em sala de aula. Por isso, é fundamental envolver os professores, chamando-os a participar das discussões desde o início do grupo.

Elaboração da seqüência
É feita com o conhecimento didático já existente e das hipóteses subjacentes à investigação.

Trabalho de campo
Os professores regulares desenvolvem a seqüência em classe. Entrevistas clínico-didáticas com os alunos podem ser feitas pelos pesquisadores para colher subsídios para a manutenção ou reelaboração de algumas atividades da seqüência.

Registro e transcrição
Todo o trabalho é documentado em áudio (as intervenções do professor e dos alunos ajudam a entender como se constrói o conhecimento), assim como o planejamento e as discussões após a realização das atividades.

Análise comparativa
Quais as semelhanças e as diferenças dos resultados obtidos no trabalho de uma mesma seqüência didática em diferentes salas? É hora das comparações e análises estatísticas e qualitativas sobre a diversidade de respostas e os progressos obtidos.
Conclusão 
A equipe sistematiza as conclusões - sempre provisórias - e utiliza o resultado para reformular a seqüência. Novas descobertas sobre como o aluno aprende podem fornecer material para outras investigações.
Isso sim é formação em serviço
Na cidade de La Plata, parte dos novos saberes didáticos nasce durante atividades de formação continuada. Coordenadoras pedagógicas são capacitadas na universidade local para trabalhar juntamente com o corpo docente e criar atividades e seqüências para uso nas escolas. "Os professores registram tudo o que acontece em sala e analisamos os resultados", conta Andrea Ocampo, vice-diretora e coordenadora pedagógica do Jardín de Infantes Nuestra Señora del Valle. As experiências bem-sucedidas são apresentadas nos cursos de formação e publicadas em apostilas. Para manter esse acompanhamento permanente, Andrea faz um planejamento detalhado do ano letivo, prevendo situações que possam ser trabalhadas. A coordenadora acompanha os professores em classe pelo menos duas vezes por semana. Na pré-escola da Escuela Joaquim V. Gonzáles, ligada à Universidade Nacional de La Plata, a equipe se reúne uma vez por mês, por três horas, para revisar as situações planejadas. "Quando temos um impasse no processo de alfabetização, buscamos nas teorias da psicogênese e da lingüística formas de entender como a criança aprende e entrevistamos os alunos", conta Graciela Brena, formadora de professores.
No Brasil, um embrião de pesquisa
Cerca de 3,5 mil alunos de 38 faculdades de Pedagogia que fazem estágio na rede estadual de São Paulo terão uma nova visão da prática de sala de aula. Uma parceria entre ela e a Secretaria de Estado da Educação transformou os futuros professores em alunospesquisadores, que levam para as turmas dos primeiros anos do Ensino Fundamental atividades planejadas com a supervisão de seus orientadores (que, por sua vez, recebem capacitação periódica de Delia Lerner). Todos registram as falas dos estudantes e depois as analisam na faculdade. "É um estágio de intervenção, não de observação passiva, como se faz normalmente", destaca Marisa Garcia, formadora do Programa Ler e Escrever, criado pela Secretaria para melhorar a leitura e a escrita dos alunos e ao qual o programa é atrelado. Ellis França, professora da Faculdade Santa Marina, de São Paulo, orienta 30 alunas, com as quais se reúne duas vezes por semana para discutir as experiências de sala de aula. Os universitários escolhem uma das quatro situações didáticas predefinidas (leitura do professor para o aluno, atividades de cópia e ditado, atividades de leitura e escrita e produção oral com destino escrito). No fim do ano, as produções das faculdades serão analisadas, compiladas e ainda se estuda a melhor maneira de socializá-las.
Quer saber mais?
BIBLIOGRAFIA 
Ingeniería Didáctica en Educación Matemática, Michéle Artigue, Régine Douady e Luis Moreno, 152 págs., Ed. Grupo Editoria Iberoamérica
Ler e Escrever na Escola - o Real, o Possível e o Necessário, Delia Lerner, 120 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 36 reais 


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